A renúncia do papa Bento XVI e a eleição do cardeal argentino Jorge
Mario Bergoglio para substituí-lo trazem à tona, mais uma vez, a questão da
reivindicação da Igreja Católica de que o papa é o legítimo sucessor do
apóstolo Pedro como cabeça da Igreja de Jesus Cristo aqui na terra. Francisco senta-se no trono de Pedro. Então, tá.
Obviamente, a primeira questão a ser determinada é se o apóstolo Pedro,
de alguma forma, teve algum trono, se ele foi uma espécie de papa da nascente
igreja cristã no século I e se ele deixou sucessor, que por sua vez, nomeou seu
próprio sucessor e assim por diante, até chegar, de Pedro, a Francisco. Eu digo
“primeira questão” não somente por causa da sequência lógica da discussão, mas
por causa da sua importância. Tanto católicos quanto protestantes tomam as
Escrituras Sagradas como a Palavra de Deus. Portanto, é imprescindível que um
conceito de tamanha importância como este tenha um mínimo de fundamento
bíblico. Mas, será que tem?
É verdade que Cefas, também chamado de Simão Pedro, foi destacado pelo
Senhor Jesus em várias ocasiões de entre os demais discípulos. Ele esteve entre
os primeiros a serem chamados (Mt 4:18) e seu nome sempre aparece primeiro em
todas as listas dos Doze (Mt 10:2; Mc 3:16). Jesus o inclui entre os seus discípulos
mais chegados (Mt 17:1), embora o “discípulo amado” fosse João (Jo 19:26).
Pedro sempre está à frente dos colegas em várias ocasiões: é o primeiro a
tentar andar sobre as águas indo ao encontro de Jesus (Mt 14:28), é o primeiro
a responder à pergunta de Jesus “quem vocês acham que eu sou” (Mt 16:16), mas
também foi o primeiro a repreender Jesus afoitamente após o anúncio da cruz (Mt
16:22) e o primeiro a negá-lo (Mt 26:69-75). Foi a Pedro que Jesus disse,
“apascenta minhas ovelhas” (Jo 21:17). Foi a ele que o Senhor disse, “quando te
converteres, fortalece teus irmãos” (Lc 22:32). E foi a ele que Jesus dirigiu
as famosas palavras, “Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha
igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela. Dar-te-ei as chaves
do reino dos céus; o que ligares na terra terá sido ligado nos céus; e o que
desligares na terra terá sido desligado nos céus” (Mt 16:18-19).
Apesar de tudo isto, não se percebe da parte do próprio Pedro, dos seus
colegas apóstolos e das igrejas da época de Pedro, que ele havia sido nomeado
por Jesus como o cabeça da Igreja aqui neste mundo, para exercer a primazia
sobre seus colegas e sobre os cristãos, e para ser o canal pelo qual Deus
falaria, de maneira infalível, ao seu povo. Ele foi visto e acolhido como um
líder da Igreja cristã juntamente com os demais apóstolos, mas jamais como o
supremo cabeça da Igreja, sobressaindo-se dos demais.
Para começar, o apóstolo Paulo se sentiu perfeitamente à vontade para
confrontá-lo e repreendê-lo publicamente quando Pedro foi dissimulado em certa
ocasião para com os crentes gentios em Antioquia (Gl 2:11-14). O apóstolo
Tiago, por sua vez, foi o líder maior do Concílio de Jerusalém que definiu a
importante questão da participação dos gentios na Igreja, concílio este onde
Pedro estava presente (Atos 15:1-21). E quando uma decisão foi tomada, ela foi
enviada em nome dos “apóstolos e presbíteros” e não de Pedro (Atos 15:22). Os
judeus convertidos, líderes da Igreja de Jerusalém, e que achavam que a circuncisão
era necessária para os gentios que cressem em Jesus, não hesitaram em
questionar Pedro e confrontá-lo abertamente quando ele chegou a Jerusalém, após
ouvirem que ele tinha estado na casa de Cornélio, um gentio. E Pedro,
humildemente, se explicou diante deles (Atos 11:1-3). Os crentes da igreja de
Corinto não entenderam que Pedro estava numa categoria à parte, pois se
sentiram a vontade para formarem grupos em torno dos nomes de Paulo, Apolo e do
próprio Pedro, não reconhecendo Pedro como estando acima dos outros (1Cor
1:12).
O apóstolo Mateus, autor do Evangelho que carrega seu nome, não entendeu
que a promessa de Jesus feita a Pedro, de que este receberia as chaves do Reino
dos céus e o poder de ligar e desligar (Mt 16:18-19), era uma delegação exclusiva
ao apóstolo, pois no capítulo seguinte registra as seguintes palavras de Jesus,
desta feita a toda igreja:
Se teu irmão pecar contra ti, vai argüi-lo entre ti e ele só. Se ele te
ouvir, ganhaste a teu irmão. Se, porém, não te ouvir, toma ainda contigo uma ou
duas pessoas, para que, pelo depoimento de duas ou três testemunhas, toda
palavra se estabeleça. E, se ele não os atender, dize-o à igreja; e, se recusar
ouvir também a igreja, considera-o como gentio e publicano. Em verdade
vos digo que tudo o que ligardes na terra terá sido ligado nos céus, e tudo o
que desligardes na terra terá sido desligado nos céus (Mat 18:15-18 -
itálico adicionado para ênfase).
É muito instrutivo notar a maneira como o apóstolo Paulo via Pedro, a
quem sempre se refere como Cefas, seu nome hebraico. Paulo o inclui juntamente
com Apolo e a si próprio como meros instrumentos através dos quais Deus faz a
sua obra na Igreja (1Cor 3:22). Se Paulo tivesse entendido que Pedro era o
líder máximo da Igreja, não o teria citado por último ao dar exemplos de
líderes cristãos que ganhavam sustento e levavam as esposas em missão (1Cor
9:4-5). Ele reconhece que Cefas é o líder da igreja de Jerusalém, mas o inclui
entre os demais apóstolos (Gl 1:18-19) e ao mencionar os que eram colunas da igreja
deixa Cefas em segundo, depois de Tiago (Gl 2:9). E em seguida narra
abertamente o episódio em que o confrontou por ter se tornado repreensível (Gl
2:11 em diante). Bastante revelador é o que Paulo escreve quanto ao seu próprio
chamado: “aquele que operou eficazmente em Pedro para o apostolado da
circuncisão também operou eficazmente em mim para com os gentios” (Gal 2:6-8).
Por estas palavras, Paulo se considerava tão papa quanto Pedro!
Nem mesmo Pedro se via como um primus inter pares, alguém
acima dos demais apóstolos. Quando entrou na casa de Cornélio para pregar o
Evangelho, o centurião romano se ajoelhou diante dele em devoção. Pedro o ergue
com estas palavras, “Ergue-te, que eu também sou homem” (Atos 10:26). Pedro
reconhece humildemente que os escritos de Paulo são Escritura inspirada por
Deus, esvaziando assim qualquer pretensão de que ele seria o único canal
inspirado e infalível pelo qual Deus falava ao seu povo (2Pedro 3:15-16). E
claramente explica que a pedra sobre a qual Jesus Cristo haveria de edificar a
sua igreja era o próprio Cristo (1Pedro 2:4-8), dando assim a interpretação
final e definitiva da famosa expressão “tu és Pedro e sobre esta pedra
edificarei a minha igreja”. A “pedra” referida pelo Senhor era o próprio
Cristo.
Em resumo, ninguém no século I, ninguém mesmo, nem o próprio Pedro,
entendeu que Jesus tinha dito a ele que ele era a pedra sobre a qual a Igreja
cristã seria edificada. E nunca esta Igreja tomou medidas para achar um
substituto para Pedro após a sua morte.
E isto introduz a segunda questão, que é a sucessão de Pedro. Creio que
basta reproduzir aqui as palavras do próprio Pedro com relação à preservação do
seu legado após a sua morte. Na sua segunda epístola ele faz menção de que tem
consciência da proximidade de sua morte e que se esforçará para que os cristãos
conservem a lembrança do Evangelho que ele e os demais apóstolos pregaram. E de
que forma? Não apontando um sucessor para conservar este Evangelho como um
guardião, mas registrando este Evangelho nas páginas sagradas da Escritura – é
por isto que ele escreveu esta epístola. Confira por você mesmo:
Por esta razão, sempre estarei pronto para trazer-vos lembrados acerca
destas coisas, embora estejais certos da verdade já presente convosco e nela
confirmados. Também considero justo, enquanto estou neste tabernáculo,
despertar-vos com essas lembranças, certo de que estou prestes a deixar o meu
tabernáculo, como efetivamente nosso Senhor Jesus Cristo me revelou.
Mas, de minha parte, esforçar-me-ei, diligentemente, por fazer que, a
todo tempo, mesmo depois da minha partida, conserveis lembrança de tudo.
Porque não vos demos a conhecer o poder e a vinda de nosso Senhor Jesus
Cristo seguindo fábulas engenhosamente inventadas, mas nós mesmos fomos
testemunhas oculares da sua majestade, pois ele recebeu, da parte de Deus Pai,
honra e glória, quando pela Glória Excelsa lhe foi enviada a seguinte voz: Este
é o meu Filho amado, em quem me comprazo.
Ora, esta voz, vinda do céu, nós a ouvimos quando estávamos com ele no
monte santo. Temos, assim, tanto mais confirmada a palavra profética, e fazeis
bem em atendê-la, como a uma candeia que brilha em lugar tenebroso, até que o
dia clareie e a estrela da alva nasça em vosso coração, sabendo, primeiramente,
isto: que nenhuma profecia da Escritura provém de particular elucidação; porque
nunca jamais qualquer profecia foi dada por vontade humana; entretanto, homens
santos falaram da parte de Deus, movidos pelo Espírito Santo (2Pedro 1:12-21 -
itálico adicionado para ênfase).
Qual foi o esforço que Pedro fez para que, depois de sua partida deste
mundo, os cristãos conservassem a lembrança do Evangelho, conforme sua
declaração acima? Pedro deixa seu legado nas cartas que escreveu, e que ele
considera suficientes para manter os cristãos relembrados de tudo que ele e os
demais apóstolos ensinaram. Não há a menor noção de um substituto pessoal,
alguém que tomasse seu lugar e transmitisse a outros sucessores o tesouro da fé
cristã. Não foi à toa que a nota central da Reforma foi a rejeição do papado e
o estabelecimento das Escrituras com sendo a única e infalível fonte de
revelação divina.
Não questiono que Francisco seja o legítimo sucessor de Bento, como
líder da Igreja Católica. O que não vejo é qualquer fundamento bíblico para
aceitar que Pedro tenha sido papa e que Francisco é seu legítimo sucessor.
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Excelente... vou procurar ler outros artigos do blog... gostei.
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