Enquanto rolava na União Soviética a tal de perestroika, que terminaria com o colapso do comunismo, o governo cubano, por meio de uma de seus braços turísticos, me convidou para visitar a ilha. Topei, até porque todas as visitas anteriores haviam sido voltados para temas bem pouco amenos.
Uma delas foi em pleno regime militar, quando era proibido viajar a Cuba. Na volta, deu até um rolo que algum dia conto.
Voltando à viagem: um dos itens do programa oficial era um almoço com o presidente da Casa das Américas, prestigioso centro cultural, pelo menos para a esquerda. Chamava-se Roberto Retamar, um tipo bem interessante, bom poeta e ensaísta.
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A horas tantas perguntei se Cuba também aderiria à perestroika, ou seja, se faria as reformas que só agora estão entrando na agenda, uns 20 anos depois.
Retamar apresentou um argumento curioso:"Durante 70 anos (tempo de vida, pouco mais ou menos, da Revolução Soviética até então), nos disseram que a verdade era esta (o modelo adotado tanto na URSS como na ilha). Agora, a verdade não é mais essa. Quem nos garante que, daqui a 70 anos, não voltarão a nos dizer que a verdade era mesmo a anterior?".
A filosofada teria lógica se se pudesse esquecer que há uma tal de vida real. Para o meu gosto, vale uma frase do general Juan Domingo Perón, o maior de todos os populistas latino-americanos e o melhor de todos os frasistas que conheço no mundo político: "La realidad es la única verdad".
Pois é, agora Fidel Castro descobre que a verdade não é a que a URSS ensinou aos cubanos e à qual se apegava meu interlocutor de um delicioso almoço na quase sempre ensolarada Havana. Fidel descobriu que venceu o prazo de validade da Revolução, a cubana como antes a soviética.
Demorou, como meu neto vive me dizendo.
Demorou tanto que a, digamos, descoberta já nem causa impacto. É liberada casualmente também em um almoço em Havana com um jornalista norte-americano de uma publicação que não chega a ser icônica no universo da mídia dos Estados Unidos, na companhia de Julia Sweig, talvez a melhor especialista em Cuba do mundo todo, pelo esforço enorme e geralmente bem sucedido em não olhar a ilha com algum tipo de viés.
Eu fiz idêntico esforço em uma série de reportagens para o "Estado de S.Paulo", em 1977.
O que deveria causar espanto é que a constatação de Fidel não o tenha levado a mudar o que ele próprio diz que já não funciona. A mim, não me espanta exatamente pela "verdade" que Retamar mencionou anos atrás.
Para Fidel não houve tempo para descobrir outra verdade. Azar dos cubanos. Azar também de um punhado de brasileiros que continuam acreditando na "verdade" antiga, em vez de, como Perón, olhar para a realidade, a única verdade.
Clóvis Rossi é repórter especial e membro do Conselho Editorial da Folha, ganhador dos prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Assina coluna às quintas e domingos na página 2 da Folha e, aos sábados, no caderno Mundo. É autor, entre outras obras, de "Enviado Especial: 25 Anos ao Redor do Mundo e "O Que é Jornalismo".
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