- Por Gleuber Vieira
Pediram-me para escrever um artigo sobre ética
e valores morais. Nada mais lógico e fácil do que mergulhar no universo das conceituações
formuladas ao longo da história sobre os temas em questão. Implicaria identificar,
comentar e comparar inúmeras definições que encontramos nas mais variadas
fontes de consulta.
Se atentarmos bem, vamos constatar que, no fundo,
todas elas expressam a mesma percepção. Mudam as palavras, alteram-se as
ênfases, mas, em sua essência, lá está, subjacente, o mesmo entendimento: ética
(do grego ethirós e do latim mos, mores no plural) significa modo de ser,
caráter. Em filosofia significa “o que é bom para o indivíduo e para a
sociedade”. Moral é o conjunto de normas, princípios, preceitos, costumes e
valores que norteiam o comportamento do indivíduo no grupo social. Portanto, a
ética encerra um enfoque teórico, enquanto a moral é normativa. Importante ressaltar
que ambos os conceitos focalizam a harmonia, a conciliação de interesses
individuais e da sociedade. Creio que basta essa mínima cogitação conceitual
para um entendimento claro e unânime sobre o que esperar de uma conduta ética e
obediente a valores morais.
Porém, como optar por essa via conceitual, natural
e cômoda, fechando os olhos para as agressões hoje em dia cometidas contra a
ética em nosso país, quando vivemos uma crise moral? Como ignorar a desfaçatez
com que são driblados, sob os mais diversos e infames artifícios, os valores
morais que constituem os fundamentos das sociedades solidamente organizadas?
Como não lembrar o descalabro das condutas que afrontam conscientemente o
comportamento ético que se pode esperar – e, mais que isso, exigir – de pessoas
responsáveis em todos os campos de atividades pública e privada? Vamos
reconhecer: vivemos sob o estigma de procedimentos que ofendem solene,
deslavada e cinicamente preceitos éticos e morais. Como fingir que não vemos o
festival de malandragem do mensalão, os escândalos das malas de subornos, a
orgia do tráfico de influência, o dinheiro de origem inconfessável escondido em
pastas e meias, as vantagens auferidas por meios escusos, o uso desavergonhado
do nepotismo, o apego inconsequente a cargos, as manobras eleitorais duvidosas,
o império do “eu não sabia”, do “foi contra minha vontade” ou do “assinei sem
ler”, a luta pela perpetuação no poder a qualquer custo, mesmo em detrimento do
autorespeito da nação? Como ignorar a impunidade que estimula a transgressão,
poupa os mais favorecidos e penaliza os que não dispõem de instrumentos para
reclamar justiça? Ou a cumplicidade dos que se omitem em suas obrigações por
terem o “rabo preso”? O fato é que se vive um quadro de visível deterioração do
tecido moral de nossa sociedade, capaz de arruinar as barreiras que defendem a
moralidade.
É realmente desanimador constatar que nos distanciamos
cada vez mais da Pindorama idílica dos versos de Gonçalves Dias e que o país
prefere cultuar Macunaíma, o “herói sem nenhum caráter” da obra de Mário de
Andrade.
Quais as causas? Onde está a raiz desse
flagelo? Difícil definir, mas é possível trazer à tona alguns pontos. A célula
básica para a semeadura de valores morais é indiscutivelmente a família. É onde
se conforma a personalidade dos jovens e lhes são transmitidas as premissas
fundamentais da vida em comunidade, do respeito ao próximo e da valorização dos
interesses comuns. É onde se forma e fortalece seu caráter. Todavia, é
preocupante perceber como esse organismo fundamental se vem debilitando e
comprometendo seu decisivo papel na preparação da juventude do país e no
fortalecimento dos valores morais. É inquietante ver pais que fazem da
leniência indiscriminada o paradigma da educação no lar; que são capazes de
questionar a atuação de professores e orientadores – prosseguidores naturais da
formação iniciada na célula familiar – que tentam incutir a disciplina, as
noções de cidadania e o espírito de civismo indispensáveis à vida em sociedade,
e acabam conflitando com as facilidades exageradas e os mimos concedidos aos
seus “intocáveis filhotes”, fechando os olhos diante de seus procedimentos
antissociais.
Nessa trilha perigosa, segue-se o ambiente
educacional dos estabelecimentos de ensino que dependem de estruturas
favoráveis, de corpos docentes bem preparados e recompensados, mas que
frequentemente vivem acossados por incertezas e atuam com insuficiente
preparação. Convivem com estruturas precárias e ameaças que podem comprometer o
exercício da nobre missão do magistério.
Estende-se esse ciclo perverso às esferas
superiores da vida nacional, onde maus e berrantes exemplos contribuem para
minar os vetores que elevam espiritualmente uma nação: um comportamento ético
irretocável e o respeito aos valores que constituem a fortaleza moral de um
povo. Tais transgressões são cometidas, até mesmo, ora por integrantes dos
poderes da República em seus diversos níveis, ora pelos que têm por missão a
própria defesa e aplicação da justiça.
Incidem no mesmo pecado políticos e
empresários que acendem uma vela a Deus e outra ao diabo, na ânsia de “se dar
bem” em qualquer situação, de assegurar espaço junto a qualquer governo ou
administração. O comentário vale também para os “religiosos” que, em detrimento
da legítima motivação espiritual, favorecem um proselitismo político-ideológico
ou buscam o enriquecimento financeiro pessoal por intermédio da malévola e
indecente exploração da fé. Tais concessões a condutas perversas também são
percebidas na parcela da mídia que não preserva sua independência e se permite,
por conveniência e mesmo por omissão, compactuar com procedimentos que
conflitam com a ética.
Será que está tudo realmente perdido? Afinal,
parece que cada um desses aspectos sumariamente citados e comentados se
interalimenta e forma um círculo vicioso do mal, de difícil rompimento. Talvez
as percepções que expus fiquem majoradas pela frequência com que os fatos
desairosos ganham espaço em nosso mundo atual, da informação universal e
instantânea.
Contudo, não quero acreditar nessa
possibilidade do irremediável. Já vi sociedade se dar conta de problemas graves
e reagir no momento certo. Por que não pode fazê-lo mais uma vez? Uma reflexão
judiciosa me faz lembrar que a maior parte do povo brasileiro percebe essa
deterioração moral, com ela não compactua e reconhece que algo precisa ser
feito. Acredito que cabe à própria sociedade desenvolver os anticorpos capazes
de destruir os vírus que contaminam setores da vida nacional e ameaçam a
solidez dos pilares morais que sustentam a ética em uma sociedade. Para tanto dispõe
dos instrumentos proporcionados pelo regime democrático, que, embora agindo
lentamente, são eficazes e asseguram resultados que não são efêmeros. Ao
contrário, podem e devem perpetuarse. Mas é preciso que cada um faça a sua
parte, a própria pessoa sendo exemplo de conduta ética e sabendo escolher,
cobrar e exigir.
É relevante o papel a ser cumprido por
famílias bem constituídas, que sabem valorizar a formação moral de seus
membros, constituindo-se em agentes dos bons costumes. São necessárias
religiões realmente voltadas para o enriquecimento espiritual do ser humano,
caminho certo e fácil para o fortalecimento de uma sociedade. Contamos também
com instituições e organizações Brasil afora que fazem ponto de honra da
observância dos valores éticos, conscientes dos benefícios de dispor, como seus
servidores, de cidadãos de formação moral sólida e confiável. Sem falar de
instituições tradicionais – entre elas as Forças Armadas – que fazem da lealdade,
da disciplina, do apego incondicional aos valores éticos o paradigma a ser
perseguido. E, fugindo a uma generalização injusta, devemos reconhecer que
existem políticos, empresários, profissionais liberais e juízes absolutamente
éticos, honestos e inatacáveis. Basta saber identificá-los e voltar as baterias
contra os que não seguem essa trilha e não merecem nossa escolha, nosso apoio,
nosso reconhecimento.
Portanto, há como reverter o quadro, ainda que
leve tempo e demande persistência. O brasileiro não pode continuar assistindo
impassível à derrocada do monumento dos valores morais provocada pela atitude
vergonhosa de alguns maus concidadãos. A solução está em nossas mãos. Somente
uma reação em cadeia, utilizando os instrumentos que o próprio regime oferece,
será capaz de reverter o quadro de deterioração moral da sociedade.
Eis por que não consegui me ater à mera
discussão de conceitos e comentários didáticos sobre “ética e valores morais”,
quando dispomos, em nosso dia a dia, de exemplos que, mais do que qualquer
debate, nos podem ensinar o que significam essas expressões e inspirar a
necessária reação. Por extensão, sabendo valorizar esses conceitos, avaliar sua
importância e identificar quem os despreza, sabemos perfeitamente como proceder
para fazê-los respeitados.
Resta começar. Portanto, mãos à obra. Acorda,
cidadão! Acorda, Brasil!
GLEUBER VIEIRA é
natural da cidade do Rio de Janeiro. Desempenhou o cargo de Ministro do
Exército, entre 1999 e 2002, e, com a criação do Ministério da Defesa, o de
Comandante do Exército
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