Dora Kramer - O Estado de S.Paulo
Depois de anos de elogios ao cinismo,
de celebração da baixa esperteza e do rebaixamento da ética à categoria das
irrelevâncias, voltamos a falar de valores na dimensão do valor que de fato
têm.
A impressão que dá é que ministros do
Supremo Tribunal Federal estavam com o tema entalado na garganta, à espera do
melhor momento para desabafar.
Assim, a cada dia, a cada sessão de
julgamento do processo do mensalão, sucedem-se, em forma de votos, lições sobre
a distinção entre o certo e o errado.
Uma questão aparentemente simples,
cuja abordagem fica complicada em ambiente onde viceja com sucesso a cultura da
transgressão.
O que seria normal tornou-se
excepcional. A regra virou exceção. Quem reclama é mal intencionado ou
desavisado sobre a impossibilidade de o Brasil andar nos trilhos da lei.
Na sessão de segunda-feira, o decano
da Corte, Celso de Mello, deu uma aula magna sobre o direito de todo cidadão de
contar com "administradores íntegros, parlamentares probos e juízes
incorruptíveis".
Um voto em feitio manual de instrução
contra a venalidade e a delinquência como modos de operação do poder público.
Pontuou com clareza meridiana o mal
que a corrupção faz ao Estado de direito, resgatou o sentido do memorável
discurso de Marco Aurélio Mello quando assumiu a presidência do Tribunal
Superior Eleitoral em 2006.
Marco Aurélio foi o primeiro a
apontar com contundência o processo de degradação de princípios baseada nas
conveniências políticas de um governo.
"A rotina de desfaçatez e
indignidade parece não ter limites, levando os já conformados cidadãos
brasileiros a uma apatia cada vez mais surpreendente, como se tudo fosse muito
natural e devesse ser assim mesmo; como se todos os homens públicos, em
diferentes épocas, fossem e tivessem sido igualmente desonestos, numa mistura
indistinta de escárnio e afronta, e o erro do passado justificasse os erros do
presente", avisou.
À época falou praticamente sozinho,
no diapasão dos votos vencidos que costumam lhe render acusações de que
contraria o senso comum por puro estrelismo.
Na essência, hoje Marco Aurélio tem a
companhia da maioria de seus pares. Com variações de entonação e argumentos,
reafirmam os limites da legalidade como pressuposto básico - deveria ser óbvio
- para a vida pública e privada.
"A
República não admite a apropriação do espaço público por governantes nem por
governados", disse Celso de Mello em lembrete desnecessário caso não
vivêssemos tempos de tão graves distorções.
Tempos em que é preciso um
processo judicial para que o País pare para ouvir que o crime não pode ser
aceito como uma prática habitual no exercício do poder.
Perícia. A certeza de que haverá condenações no
capítulo da corrupção ativa resulta de pura lógica: se o tribunal aceita que os
fatos apontados pela acusação aconteceram, aceita que alguém tinha domínio
sobre eles.
Do contrário teriam ocorrido
sem sujeito nem objeto. Algo como um corpo (de delito) sem tronco nem cabeça,
composto só de membros.
Estilo. Com seu jeito ameno, o
presidente do Supremo, Ayres Britto, confrontou a argumentação do revisor
Ricardo Lewandowski de forma talvez, se considerado o conteúdo, mais dura que o
relator Joaquim Barbosa com suas maneiras irritadiças.
Na sessão de segunda-feira
chamou a tese do caixa 2, aceita por Lewandowski, de "teratologia
argumentativa". Usou o juridiquês para dizer o que em bom português
significa "aberrante", "estapafúrdio", "absurdo".
Empregatício. O leitor Celso da Costa, advogado, faz uma
constatação: "Para Lula, ministro do Supremo é cargo de confiança".
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