Recentemente, disse estas palavras a um grupo de centenas de pessoas: “Nunca, nunca, nunca é correto ficar irado contra Deus”. Houve uma feição de incredulidade em muitos rostos. Muitas pessoas não aceitavam tais palavras. É evidente que não concordavam com tal afirmação.
Obviamente, alguns me compreendiam, outros pareciam confusos. Desde então, tenho pensado muito sobre aqueles olhares perplexos. Que pressuposições tornaram esta afirmação difícil de ser aceita? Para mim, nada poderia ser tão óbvio. Mas, por que ela parece tão confusa para outros?
Existem duas pressuposições que podem ser comuns para muitas pessoas de nossos dias, duas pressuposições que fazem tais pessoas recuar diante de minha afirmação.
Primeira, muitos pressupõem que sentimentos não são certos nem errados; são neutros. Por isso, dizer que a ira (quer seja contra Deus ou contra qualquer pessoa) não é correta assemelha-se a dizer que espirrar não é correto. Você não coloca o rótulo de “certo” ou “errado” em espirrar. É algo que apenas acontece com você. Essa é a maneira como muitas pessoas pensam sobre os sentimentos: eles apenas acontecem com você. Por conseguinte, não são morais ou imorais; são neutros. Assim, eu dizer que nunca é correto ficar irado contra Deus equivale a colocar o sentimento de ira em uma categoria à qual ele não pertence — a categoria moral.
Este tipo de pensamento sobre os sentimentos é uma das razões por que existe tanta superficialidade no cristianismo. Pensamos que somente atos de reflexão e volição têm relevância moral, neste mundo. E achamos que sentimentos como desejo, deleite, frustração e ira são sentimentos involuntários, que irrompem em nossa alma sem relevância moral. Não nos admiramos com o fato de que muitas pessoas não buscam serem transformadas em seus sentimentos, mas apenas nas “escolhas”. Isso produz um crente superficial.
Esta pressuposição é contrária ao ensino da Bíblia. Na Bíblia, muitos sentimentos são considerados moralmente bons ou maus. O que os torna bons ou maus é a maneira como eles se relacionam com Deus. Se mostram que Deus é verdadeiro e precioso, os sentimentos são bons. Se sugerem que Deus é mau, falso ou tolo, tais sentimentos são maus. Por exemplo, o deleitar-se no Senhor não é neutro, visto que é recomendado (Sl 37.4). Portanto, é bom. Mas deleitar-se com a injustiça é errado (2 Ts 2.12), porque significa que o pecado é mais desejável do que Deus, e isto não é verdade.
O mesmo é verdade a respeito da ira. A ira demonstrada em relação ao pecado é boa (Mc 3.5), mas a ira dirigida contra a bondade é pecado. Essa é a razão por que nunca é correto ficar irado contra Deus. Ele é sempre e tão-somente bom, não importa quão estranhos e dolorosos pareçam os caminhos dEle para conosco. A ira dirigida contra Deus significa que Ele é mau, fraco, cruel e tolo. Nada disso é verdade e isso desonra a Ele. Quando Jonas e Jó ficaram irados contra Deus, Jonas foi repreendido por Deus (Jn 4.9), e Jó se arrependeu no pó e na cinza (Jó 42.6).
A segunda pressuposição que pode levar muitas pessoas a tropeçarem na afirmação de não ser correto ficar irado contra Deus é a pressuposição de que Deus realmente faz coisas que nos dão motivo para ficarmos aborrecidos com Ele. Mas, embora a providência de Deus pareça bastante dolorosa, devemos crer que Ele é bom, e não ficarmos irados contra Ele. Isso seria semelhante a ficarmos irados contra o cirurgião que nos opera. Tal ira seria correta, se o cirurgião se enganasse e cometesse um erro. Mas Deus nunca se engana.
Tenho aprendido, com o passar dos anos, que, se uma pessoa pergunta: “É correto ficar irado contra Deus?”, ela pode estar querendo perguntar outra coisa bem diferente. Talvez esteja querendo dizer: “É correto expressar ira contra Deus?” Estas perguntas não significam a mesma coisa, e a resposta nem sempre é a mesma.
Este tipo de pergunta geralmente surge em tempos de perdas e grandes sofrimentos. A doença ameaça desfazer todos os seus sonhos. A morte toma um filho precioso da família. Um divórcio ou um abandono completamente inesperados abala os alicerces de seu mundo. Nestas ocasiões, as pessoas são capazes de se irarem bastante contra Deus.
Isto é correto? Para responder esta pergunta, podemos, talvez, questionar as pessoas iradas: é correto sempre ficar irado contra Deus? Em outras palavras, uma pessoa pode sentir-se irada contra Deus por qualquer motivo e ainda estar correta? Foi correto, por exemplo, Jonas irar-se contra a misericórdia de Deus para com Nínive? “Deus se arrependeu do mal que tinha dito lhes faria e não o fez. Com isso, desgostou-se Jonas extremamente e ficou irado” (Jn 3.10-4.1). Imagino que a resposta é “não”. Não devemos ficar irados contra Deus por simplesmente qualquer razão.
Todavia, perguntamos: que atos de Deus nos dariam o direito de ficarmos irados contra Ele, e quais atos não nos dariam este direito? Isto é difícil de responder. A verdade começa a fechar o coração irado.
Que tal respondermos: as coisas que nos desagradam? Estes atos de Deus justificam nossa ira contra Ele? São atos de Deus que nos ferem? “Eu mato e eu faço viver; eu firo e eu saro; e não há quem possa livrar alguém da minha mão” (Dt 32.39). Estes atos nos justificam em dirigir nossa ira contra Deus? Ou é a escolha dEle em permitir que o diabo nos prejudique ou nos aflija? “Disse o Senhor a Satanás: Eis que ele [Jó] está em teu poder; mas poupa-lhe a vida. Então, saiu Satanás da presença do Senhor e feriu a Jó de tumores malignos, desde a planta do pé até ao alto da cabeça” (Jó 2.6-7). A decisão de Deus em permitir que Satanás aflija a nós e a nossos filhos justifica a ira que sentimos contra Ele?
Ou veja a ira por outro lado. O que é a ira? A definição comum é: “Um intenso estado emocional induzido por desprazer”. Mas existe uma ambigüidade nesta definição. Você pode sentir “desprazer” por uma coisa ou por uma pessoa. Ira por uma coisa não contém indignação contra uma decisão ou um ato. Apenas não gostamos dos resultados daquela coisa: a embreagem quebrada, o grão de areia que alojou-se em nosso olho ou a chuva em nosso piquenique. Mas, quando ficamos irados contra uma pessoa, sentimos desprazer na escolha que ela fez ou na atitude que ela praticou. A ira contra uma pessoa sempre implica forte desaprovação. Se você está irado contra mim, acha que eu fiz algo que não deveria ter feito.
Esta é razão por que irar-se contra Deus nunca é correto. É errado — sempre errado — desaprovar a Deus por aquilo que Ele faz e permite. “Não fará justiça o Juiz de toda a terra?” (Gn 18.25). É arrogância de criaturas finitas e pecaminosas desaprovar a Deus por aquilo que Ele faz e permite. Podemos lamentar o sofrimento. Podemos ficar irados contra o pecado e contra Satanás. Mas Deus é sempre correto naquilo que faz e permite. “Ó Senhor Deus, Todo-Poderoso, verdadeiros e justos são os teus juízos” (Ap 16.7).
Muitos dos que dizem ser correto o irar-se contra Deus realmente querem dizer que é correto expressar a Deus a sua ira. Quando eles me ouvem afirmar que é errado ficar irado contra Deus, pensam que isto significa: “Alimente os seus sentimentos e seja hipócrita”. Este não é o significado das minhas palavras. Elas significam que é sempre errado desaprovar a Deus em qualquer de seus juízos.
Se experimentamos a emoção pecaminosa de ira contra Deus, o que devemos fazer? Devemos acrescentar o pecado de hipocrisia ao pecado de ira? Não. Se temos tal sentimento, devemos confessá-lo a Deus. Ele o conhece, de qualquer maneira. Deus vê o nosso coração. Se a ira contra Deus estiver em nosso coração, podemos contar-lhe isso, dizer que sentimos tristeza e pedir-Lhe que nos ajude a remover tal ira, mediante a fé em sua bondade e sabedoria.
Quando Jesus morreu na cruz por nossos pecados, Ele removeu para sempre a ira de Deus, em favor de todos os que crêem nEle. A disposição de Deus para conosco agora é de completa misericórdia, mesmo quando se mostra severa e disciplinadora (Rm 8.1). Portanto, aqueles que confiam em Cristo serão removidos do terrível espectro da ira de Deus. Podemos clamar em agonia: “Deus meu, Deus meu, onde estás?” Mas logo diremos também: “Em tuas mãos, entrego o meu espírito”.
Digo-o novamente: nunca é correto ficar irado contra Deus. Mas, se você cair neste pecado, não o aumente por meio de hipocrisia. Conte a Deus a verdade e arrependa-se.
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