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terça-feira, 18 de setembro de 2012

O tal fragmento sustentando que Jesus teve mulher não tem importância e, vênia máxima, cheira a pesquisa militante - Por Reinaldo Azevedo


Sei que fica parecendo pretensão declarar a desimportância de um troço que mobiliza o mundo, como o tal pedaço de papiro que estaria a sugerir que Jesus Cristo teve uma mulher… Transcrevo trecho da reportagem de Ricardo Carvalho e Guilherme Rosa, na VEJA Online. Volto depois.

Um pedaço de papiro de apenas quatro por oito centímetros pode reacender o debate — e as teorias da conspiração — sobre a vida de Jesus Cristo e, em especial, sobre a possibilidade de ele ter sido casado. Uma historiadora especializada nos primeiros anos do cristianismo recebeu um papiro, que seria fragmento de um evangelho apócrifo, com uma frase nunca antes vista em nenhuma documento antigo: “Jesus disse a eles, ‘Minha mulher (…)’.” Embora outros evangelhos apócrifos façam referência a um Jesus que teria se relacionado, em especial,  com Maria Madalena, nunca nenhum deles trouxe a palavra ‘esposa’.
O papiro é escrito em copta, um antigo idioma egípcio que usa caracteres gregos. A peça, trazida a público por Karen King, historiadora eclesiástica da Universidade Harvard, em um encontro de especialistas em copta em Roma, nesta terça-feira, teria sido escrita no século IV, mas provavelmente é uma cópia de um texto anterior feito por volta de 150 d.C. 
Não é provaKaren já se antecipou à principal discussão que seu estudo provocará: em um texto publicado no site de Harvard, ela afirma que a referência não constitui prova de que Jesus Cristo tinha uma esposa. No entanto, se de fato datar do século 2 d.C., o fragmento indica que o debate sobre se aquele que é considerado filho direto de Deus pela cristandade era ou não celibatário era uma realidade 150 anos após a sua morte.
No artigo publicado no site de Harvard, Karen King batizou o achado de The Gospel of Jesus’s Wife (O Evangelho da Mulher de Jesus, em tradução livre). O texto apócrifo, composto por oito linhas, está totalmente fragmentado, o que dificulta qualquer tentativa de interpretação, segundo a própria historiadora. Mas ela é enfática ao comentar a quarta – e mais importante – linha, na qual se lê claramente: “Jesus disse a eles: ‘Minha mulher’.”
“Essas palavras não podem significar nada diferente”, disse Karen King ao jornal The New York Times. A quinta linha prossegue: “Ela estará preparada para ser minha discípula”, mas é incerto se Jesus estaria se referindo àquela que seria sua esposa ou a outra mulher. A historiadora tampouco acredita na tese de que a esposa em questão fosse Maria Madalena. Em entrevista publicada na Harvard Magazine , ela disse que nos textos antigos as mulheres eram sempre definidas pelo seu vínculo com homens (como na fórmula “Maria, esposa de José”). Jesus e Maria Madalena não são mencionados dessa forma em nenhum documento conhecido. “Toda a informação mais antiga e confiável sobre o Jesus histórico se cala a esse respeito”, diz a pesquisadora.
(…)
VolteiReproduzo trecho do que disse à VEJA Online André Chevitarese, professor do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Comento em seguida:
“A professora Karen King é uma cientista da religião, muito respeitada na área. Mas ela é uma pesquisadora do tempo presente, cujas interpretações também falam do nosso tempo. Suas pesquisas destacam a presença e importância das mulheres no início do cristianismo, gozando de primazias no interior das igrejas antigas. Essas reivindicações antigas são transplantadas para os dias de hoje, quando as mulheres são excluídas da igreja. São as feministas que retomam essa experiência antiga, para usá-las em apoio às suas posições.”
“Usar esse fragmento para dizer que Jesus era casado é sensacionalismo. Seria fazer algo parecido com o que Dan Brown fez em O Código Da Vinci, onde usou trechos do Evangelho de Felipe em copta para dizer que Jesus beijou Maria Madalena. De novo, esse evangelho diz mais sobre as vivências dessa comunidade do que sobre o Jesus real.”
ComentoKaren King não é besta. Ela sabe que tem uma reputação acadêmica e que seu achado, ainda que verdadeiro, é amplamente insuficiente para atestar qualquer coisa sobre a relação de Jesus com as mulheres. Também não dá para ignorar que ela é justamente uma pesquisadora que lida com as questões de gênero na Igreja, especialmente fascinada, diga-se, por… Maria Madalena! É realmente uma sorte grande, não é mesmo?, ter encontrado um pedacinho de um papiro que vai ao encontro de suas curiosidades, de suas pesquisas, de sua, digamos, militância acadêmica.
Mas isso não é tudo, não! O celibato sacerdotal, como é sabido, não é um dogma da Igreja católica. E o celibato de Jesus também não está nessa categoria. Há vários indícios na Bíblia de que Jesus fosse celibatário, sim, e de que essa era uma orientação entre os primeiros divulgadores da fé cristã. Que importância tem isso? Vamos ver. A esterilidade, o “ventre seco” e a falta de filhos eram encarados como uma maldição. Lembrem-se como, a rigor, tudo começou: Deus concedeu a Sara, finalmente, a graça de um filho: Isaac.
Nesse contexto, o celibato se torna, antes de mais nada, uma decisão de caráter sacrificial, de renúncia voluntária àquilo que é considerado um grande bem, de entrega absoluta à Igreja. Mas que fique claro: a divindade de Cristo não tem nenhuma relação com o seu celibato ou não, ainda que o tal fragmento de papiro fosse suficiente para combater as evidências em contrário.
Assim, o pedacinho de papel é algo que não teria importância central ainda que se lhe pudesse dar fé histórica.
Por Reinaldo Azevedo - Veja.com

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