"O que me preocupa não é nem o grito dos corruptos, dos violentos, dos desonestos, dos sem caráter, dos sem ética... O que me preocupa é o silêncio dos bons." - Martin Luther King

domingo, 10 de abril de 2011

Para Pensar... - Cada tempo com seu uso

Por Gaudêncio Torquato - Blog do Noblat
“Cada coisa com seu uso, cada roca com seu fuso”. Ou ainda: “cada terra com seu uso, cada preta com seu luso”. O primeiro ditado pode constar do dicionário dos conceitos “politicamente corretos”, mas o segundo, nesses tempos do Big Brother da linguagem, está condenado ao ostracismo. Por lembrar um passado escravagista.
Atenção, leitores. Palavras, frases, ditados e expressões populares que retratam o ethos nacional e interpretam nossa maneira jocosa de ver, sentir e julgar pessoas e fatos, estão em quarentena. Só podem aparecer em ocasiões e circunstâncias bem medidas pelos interlocutores, receosos de que possam ser flagrados por patrulheiros da expressão “politicamente incorreta”.
Nos últimos tempos, o destempero tem aumentado por conta do uso inapropriado (?) de argumentos considerados discriminatórios. O mais recente episódio teve como motivo uma resposta do deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ) à cantora Preta Gil.
O polêmico parlamentar, ao retrucar uma pergunta da atriz, afirmou que seus filhos “não correm risco” de se apaixonar por negras porque foram “muito bem educados”, enfrentando, por isso, a acusação de cometer crime por intolerância racial.
A contenda que se trava em torno da igualdade de direitos e, particularmente, sobre o campo da linguagem de discriminação, não é peculiaridade nossa. Trata-se de uma pauta central na agenda da Humanidade, e ganha corpo na esteira do momento que vivemos, designado como Era da Informação.
A característica fundamental deste ciclo é o rompimento de barreiras nacionais e continentais e a conseqüente interpenetração de culturas, com seus valores, princípios e costumes.
Nesse cenário, a ameaça de morte que paira sobre Sakineh Ashtiani, no Irã, a prisão do renomado artista de vanguarda chinês, Ai Weiwei (um dos autores do Ninho de Pássaro, construído para os Jogos Olímpicos de Pequim, em 2008), ou as recorrentes tiradas do deputado Bolsonaro contra minorias étnicas, fazem parte da mesma carta de compromissos, que reúne os batalhões dos direitos humanos em todo o mundo.
O bastião ganha adeptos a cada dia. Desde a queda do Muro de Berlim e início do desmonte dos impérios autoritários, o ideário da promoção humana passou a ganhar peso na mídia e a inspirar lutas em campos distintos, como o da igualdade de direitos das mulheres, da discriminação racial e do direito às diferenças.
Nesta fase, também cognominada de “pós-industrial”, a sociedade busca mecanismos para aperfeiçoar sua defesa, criando, à margem das instituições políticas clássicas (partidos e Parlamentos), novas representações para intermediar as relações sociais.
Formou-se um gigantesco escudo, integrado por organizações não governamentais (ONGs). Dele partem as campanhas para ajustar os eixos da vida social, seja promovendo a igualdade de gêneros e a diversidade cultural, seja defendendo visões diferentes dos padrões antigos.
O Brasil emerge como um dos grandes laboratórios da nova engenharia social. No quesito da Cidadania, o país acompanha o ritmo do tempo. E participa dos foros das nações desenvolvidas. Há cabeças de ponte por todos os lados guerreando a favor de setores que se consideram discriminados. O que difere nosso país de outros, no que tange aos direitos humanos, é o gosto pelo tom carnavalesco, espetaculoso, espalhafatoso, com que se procura dar eco ao embate.
Veja-se o caso Bolsonaro. O parlamentar, sabe-se, faz um tipo. Quanto mais contundente e extravagante, mais fiéis arregimenta em torno de seu perfil. Um perfil que ele procura cobrir com medalhas militares, um manto conservador e franjas discriminatórias. Sua peroração, é evidente, quer motivar as bases. Que lhe darão os votos.
Cheguemos, agora, a outro território. A esfera dos direitos humanos avança a largos passos. Minorias e grupos que se consideram alijados do foro principal contam com bastiões ativos, do tipo comissões especializadas (mulheres, negros, núcleos étnicos), que se incrustam em entidades de vulto como a Ordem dos Advogados do Brasil. Esse é o lado bom.
Mas há um lado que gera desconfiança. Partidos ou organizações utilitaristas exageram na dose, submetendo o ideário da Cidadania aos caprichos pessoais de uns e outros. Patrulhas estridentes fazem marcação cerrada contra discursos que nem sempre são ofensivos às minorias.
Enxugando os prós e contras, o que se vê é um punhado de pessoas querendo cavalgar a “montaria da discriminação” para angariar prestígio. O sinal amarelo dá um alerta. Tem gente querendo tirar proveito do debate. A emoção vence a razão. Os filtros sociais passam a se entupir de exageros. Coisas incríveis acontecem. A ordem democrática – que corre nos dutos da linguagem desabrida, descontraída e criativa -, sofre abalos. De maneira instintiva, a autocensura se instala nos ânimos. Posso falar isso? Posso dizer aquilo? A piada é conveniente?
Muitos temem cantar "o teu cabelo não nega, mulata, porque és mulata na cor", temendo represálias. Lamartine Babo, compositor da música, não é mais desculpa. Quem é esse Luiz Caldas que entoa o refrão: "nega do cabelo duro, que não gosta de pentear"? E a "cabeleira do Zezé, será que ele é, será que ele é"? João Roberto Kelly poderá ser incriminado.
Tem mais. Há dúvidas sobre a conveniência de botar aquela música, tema de Villa Lobos, que fala do cravo que brigou com a rosa. O cravo, homem, e a rosa, a mulher, poderiam estimular, com tal letra, a violência nas crianças.
E quem se atrever a agitar a criançada com a iniciativa de bater palmas com a música “atirei o pau no gato” poderá ser alertado. Cuidado, lembrará a professora, com os impulsos bestiais.
Só resta a você, leitor de mais 60 anos, um sorriso não muito convincente para enfrentar o besteirol que se derrama pelos desvãos das fortalezas contra a discriminação. Afinal, você tem muito tempo pela frente. Está longe de ser velho. Ora, você vive "a melhor idade”.




Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político e de comunicação. Escreve aos domingos em O Estado de S. Paulo. Twitter @gaudtorquato



 

Nenhum comentário:

Postar um comentário